A Recuperação Judicial do Empresário Rural
A discussão existente até a promulgação da reforma da legislação de insolvência e recuperação judicial implementada pela Lei nº 14.112/20, no que diz respeito ao produtor rural, tinha como ponto central a legitimidade ativa do mesmo considerando a exigência, ou não, do período de mais de dois anos de inscrição na Junta Comercial.
A doutrina majoritária já entendia pela inexigibilidade do registro como único meio de comprovação da atividade empresária exercida pelo produtor. O STJ também consolidou entendimento no mesmo sentido.[1]
Todavia, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso, por exemplo, mantinha a posição de que se faria imprescindível o registro na Junta Comercial do respectivo estado com anterioridade mínima de dois anos.
A Lei nº 14.112/20, por sua vez, tendo em vista a relevância da atividade rural no Brasil, a qual representa verdadeiro motor da economia, promoveu significativas mudanças quanto ao produtor empresário no sistema da insolvência.
As inclusões promovidas pelos §§ 3º e 4º o art. 48 da Lei nº 11.101/05 sepultaram definitivamente o debate sobre a necessidade do registro prévio pelo período superior a dois anos para que o empresário rural pudesse propor o pedido de recuperação judicial, trazendo segurança jurídica ao tema.
Art. 48 […] § 3º – Para a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo, o cálculo do período de exercício de atividade rural por pessoa física é feito com base no Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir o LCDPR, e pela Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) e balanço patrimonial, todos entregues tempestivamente.
4º – Para efeito do disposto no § 3º deste artigo, no que diz respeito ao período em que não for exigível a entrega do LCDPR, admitir-se-á a entrega do livro-caixa utilizado para a elaboração da DIRPF.
Modificação de aspecto fundamental, como se observa, pois estabelece os meios de prova pelos quais o produtor rural pessoa física pode demonstrar o exercício regular da atividade como empresário, ainda que sem registro, restando claro que a questão do registro passa a ser irrelevante para a contagem do biênio legal de atividade.
Reconhecendo o que a doutrina e a jurisprudência construíram na prática, a nova legislação passa a afirmar a regularidade da atividade do empresário rural sem registro, estabelecendo diretrizes documentais básicas para sua comprovação, seja no caso de pessoa física ou jurídica, conforme se depreende dos §§ 2º e 5º do mesmo art. 48[2].
Apesar da importante alteração feita pela Lei nº 14.112/20 no referido art. 48, as inserções promovidas pela reforma no art. 49 ampliaram sobremaneira os créditos não sujeitos à recuperação judicial, fato, a nosso ver, altamente negativo.
Não são poucos os autores que elencam dentre os principais obstáculos a uma maior efetividade da recuperação judicial o fato da existência de créditos não sujeitos. Tal circunstância impõe, no mais das vezes, alto poder a uma minoria de credores em detrimento do acordo coletivo que poderia contribuir para a superação da crise de determinada empresa.
Os §§ 7º, 8º e 9º do art. 49 excepcionam uma série de créditos que são comuns na atividade rural, representando, no mais das vezes, o maior volume em uma situação de crise.
No caso do § 7º, há ressalva quanto à sujeição de créditos subsidiados previstos nos arts. 14 e 21 da Lei nº 4.829/65 (Lei do Crédito Rural), desde que não renegociados com base em ato do Poder Executivo anteriormente ao pedido de recuperação judicial, conforme excepciona o § 8º do mesmo dispositivo.
Já no § 9º, o legislador excluiu expressamente o crédito concedido para aquisição de terras e garantias vinculadas no período de três anos imediatamente anteriores ao ajuizamento do pedido de recuperação judicial, tornando tal crédito não sujeito aos seus efeitos.
Importante, ainda, citar a alteração promovida pela reforma no art. 11, caput, da Lei nº 8.929/1994, a qual incluiu mais uma exceção à regra geral de sujeição de créditos ao procedimento recuperacional. Tal dispositivo prevê como não sujeitos os créditos e garantias vinculadas à CPR física, qual seja, quando não há especificação de preço, mas somente quantidade e qualidade de produto, na qual tenha havido antecipação parcial ou total do preço, bem como os créditos oriundos de CPR representativa de troca de insumos.
De forma conclusiva, o que se verifica é que a reforma da legislação no que tange especificamente ao produtor rural, de um lado, trouxe importante segurança jurídica em matéria de legitimidade ativa, em linha com o entendimento consagrado na doutrina e jurisprudência majoritárias. De outro lado, porém, há evidente contrariedade ao espírito do art. 47 da Lei pela inclusão de uma série de créditos não sujeitos, o que compromete a chance de recuperação do empresário que lança mão do instituto, bem como prejudica os demais credores envolvidos no processo.
Dr. Samuel Radaelli
[1] STJ, Recurso Especial nº 1.800.032-MT, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 05/11/2019; STJ, Recurso Especial nº 1.911.953-MT, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 06/10/2020; STJ, Recurso Especial nº 1.834.452-MT, Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 20/10/2020.
[2] § 2º – No caso de exercício de atividade rural por pessoa jurídica, admite-se a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo por meio da Escrituração Contábil Fiscal (ECF), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir a ECF, entregue tempestivamente.
5º – Para os fins de atendimento nos §§ 2º e 3º deste artigo, as informações contábeis relativas a receitas, a bens, a despesas, a custos e a dívidas deverão estar organizadas de acordo com a legislação e com o padrão contábil da legislação correlata vigente, bem como guardar obediência ao regime de competência e de elaboração de balanço patrimonial por contador habilitado.